Quando eu for pequeno
José Jorge Letria, in "O Livro Branco da Melancolia"
Quando eu for pequeno, mãe,
quero ouvir de novo a tua voz
na campânula de som dos meus dias
inquietos, apressados, fustigados pelo medo.
Subirás comigo as ruas íngremes
com a certeza dócil de que só o empedrado
e o cansaço da subida
me entregarão ao sossego do sono.
Quando eu for pequeno, mãe,
os teus olhos voltarão a ver
nem que seja o fio do destino
desenhado por uma estrela cadente
no cetim azul das tardes
sobre a baía dos veleiros imaginados.
Quando eu for pequeno, mãe,
nenhum de nós falará da morte,
a não ser para confirmarmos
que ela só vem quando a chamamos
e que os animais fazem um círculo
para sabermos de antemão que vai chegar.
Quando eu for pequeno, mãe,
trarei as papoilas e os búzios
para a tua mesa de tricotar encontros,
e então ficaremos debaixo de um alpendre
a ouvir uma banda a tocar
enquanto o pai ao longe nos acena,
lenço branco na mão com as iniciais bordadas,
anunciando que vai voltar porque eu sou pequeno
e a orfandade até nos olhos deixa marcas.
Um PAC com Dilma
A Excomunhão da Vítima
(Por Miguezim da Princesa *)
I
Peço à musa do improviso
Que me dê inspiração,
Ciência e sabedoria,
Inteligência e razão,
Peço que Deus que me proteja
Para falar de uma igreja
Que comete aberração.
II
Pelas fogueiras que arderam
No tempo da Inquisição,
Pelas mulheres queimadas
Sem apelo ou compaixão,
Pensava que o Vaticano
Tinha mudado de plano,
Abolido a excomunhão.
III
Mas o bispo Dom José,
Um homem conservador,
Tratou com impiedade
A vítima de um estuprador,
Massacrada e abusada,
Sofrida e violentada,
Sem futuro e sem amor.
IV
Depois que houve o estupro,
A menina engravidou.
Ela só tem nove anos,
A Justiça autorizou
Que a criança abortasse
Antes que a vida brotasse
Um fruto do desamor.
V
O aborto, já previsto
Na nossa legislação,
Teve o apoio declarado
Do ministro Temporão,
Que é médico bom e zeloso,
E mostrou ser corajoso
Ao enfrentar a questão.
VI
Além de excomungar
O ministro Temporão,
Dom José excomungou
Da menina, sem razão,
A mãe, a vó e a tia
E se brincar puniria
Até a quarta geração.
VII
É esquisito que a igreja,
Que tanto prega o perdão,
Resolva excomungar médicos
Que cumpriram sua missão
E num beco sem saída
Livraram uma pobre vida
Do fel da desilusão.
VIII
Mas o mundo está virado
E cheio de desatinos:
Missa virou presepada,
Tem dança até do pepino,
Padre que usa bermuda,
Deixando mulher buchuda
E bolindo com os meninos.
IX
Milhões morrendo de Aids:
É grande a devastação,
Mas a igreja acha bom
Furunfar sem proteção
E o padre prega na missa
Que camisinha na lingüiça
É uma coisa do Cão.
X
E esta quem me contou
Foi Lima do Camarão:
Dom José excomungou
A equipe de plantão,
A família da menina
E o ministro Temporão,
Mas para o estuprador,
Que por certo perdoou,
O arcebispo reservou
A vaga de sacristão.
(*) Poeta popular, Miguezim de Princesa,
é paraibano radicado em Brasília.
O rato do campo e o rato da cidade
Para se cruzar Mendes são quinze lombadas, na estrada próxima a Paulo de Frontin são oito obstáculos. Aqui em Nilópolis, onde moro, em todos os cruzamentos há quebra-molas, eufemísticamente chamados de redutores de velocidade. Bloquear um carro é fácil, difícil é bloquear a mente mal-educada ou retardada de um motorista.
Ontem, quando chegava perto de casa, da minha viagem, quando escapei da "mautorista" em Avelar, estava ultrapassando um dos milhares de quebra-molas da cidade. Um automóvel estava chegando no cruzamento pela transversal à minha direita e parou. Segui minha direção despreocupado, mesmo porque a rua em que eu estava tem dez vezes mais movimento que quase todas as outras, é, por assim dizer, a preferencial. Porém, de repente, não mais que de repente, o motorista teve um surto de Barrichelo e atravessou rápido à minha frente.
Mais uma vez tive que frear forte para não arrebentá-lo. Só tive tempo de gritar-lhe um porra e um caramba, este um eufemismo que uso para outra palavra mais agressiva.
Cheguei ao fim do post e não escrevi aquilo a que me propunha - um poema de um Dom Ratão urbano zoando uma bela Camundonga do campo, roedores, para ficar no espírito do título.
Você gosta de trabalhar?
E enquanto procurava finalizar um post começado na quinta-feira ouvi alguém na Rádio CBN discorrer sobre a etimologia da palavra tripalium. Gostei da prosopopéia, da presumida cultura inútil. E parei para dar mais atenção. Não me dando por satisfeito, fui pesquisar. Cheguei ao site Sua Língua, do Cláudio Moreno. Navegando por curiosidade li o tópico "Como se escreve? fluido ou fluído?
Extremamente didático sob diversos aspectos. Vale a pena ler. Uma leitora precisava registrar uma empresa de cosméticos feitos com essências naturais e pretendia nomeá-la "Fluidos da Natureza". Estava em dúvida quanto à grafia da palavra fluido. O professor finalizou: "Aposto meus diplomas como nove entre dez brasileiros vão pronunciar flu-í-dos mas escreva corretamente (flui-dos), sem o acento).
Não garanto você se tornar um Camões porém ficará mais "autêntico" no vernáculo, para usar uma expressão de um ex-amigo meu, pretenso intelectual.
En passant (até o Lula está usando essa expressão francesa. Como ele mesmo reconhece, e se auto-elogia, já se foi o tempo em que empregava "menas". Breve, em uma apresentação a uma primeira-dama internacional ele dirá: "enchanté, madame"), mas repetindo, en passant, leia meu post O amor é uma flor roxa, onde rimo descuido com fluido.
E o tripalium? Era um instrumento romano de tortura, uma espécie de tripé formado por três estacas cravadas no chão, onde eram supliciados os escravos. E tripalium virou trabalho. E apesar da comemoração internacional do Dia do Trabalho e do uso de frases como "o trabalho dignifica o homem", nunca se perdeu de vista o destino de Adão expulso do Paraíso, que é "comer o pão com o suor do próprio rosto". Para alguns, trabalho sempre terá a conotação de castigo. Muito propriamente uma amiga usa o termo tronco designando seu trabalho.
Do francês "travail" os ingleses importaram "travel" que designava um esforço penoso e cansativo, uma tortura enfim, mas que hoje é apenas uma "viagem".
Leia o Sua Língua e saiba que no referente a trabalho antigamente "chorava todo mundo mas agora ninguém chora mais". Jorge Benjor
Você falou que eu ia ser compositor
Sempre fui um apaixonado. Sofri um pouco no princípio mas calejei. Há muito tempo nada me machuca. A menina que inspirou os versos abaixo disse que eu ia ser compositor. Tão má ela era. A melodia perpassa minha cabeça. Quem sabe um dia não transponho para o violão... Ah, eu tinha 27 anos, ela, 15.
ADIVINHA
Quero
que esta onda vença,
rebelde,
intimorata,
quero.
Em sua crista,
leves,
correrão meus sonhos
despreocupados.
Ah, eu serei feliz
enquanto
na praia
a onda não arrebentar.
As flores que não desabrocharam
Um instantâneo da infância
A água descia muito forte e me conduzia por entre a relva alta.
Meu corpo não flutuava, era arrastado.
E eu pensava que sabia nadar.
Chuva é a alegria de toda criança.
Naqueles tempos, raros eram os muros, raras eram as edificações.
Minhas modestas aventuras de menino bem comportado não tinham barreiras.
Viam-se as ruas do outro lado do quarteirão.
E fazíamos nossos próprios atalhos;
para ir para a escola;
para ir brincar com a garotada;
assim atravessávamos os terrenos baldios.
Minha casa nunca teve um jardim. Atenção, já mudei de cenário e de estilo literário. Estou morando agora a 300 metros do lugar onde se originou esta narrativa. Meu pai sonhava ter um sítio algum dia, um sonho não concretizado. Mas nosso terreno era um pequeno sítio e um quarto dele, 12 X 10 metros, era plantado com cana de açúcar. Outra área, de 15 X 10 metros produzia aípim. Sem contar os cinco abacateiros, o pé de carambola e um pé de feijão-guandu.
Ainda a chuva. Uma conhecida da minha mãe me havia prometido mudas de flores. Eu deveria ir buscá-las quando chovesse. Mas eu era muito guri. Esse projeto de jardim não foi adiante.
Meu pai era caminhoneiro. As condições da estrada Rio-Bahia eram péssimas. As viagens duravam dez, quinze dias, pelo menos. Quando ele voltava sempre havia más notícias - sobre o custo de vida. Minha mãe desfiava o rol da carestia e eu ficava deprimido. E arquitetava a organização de uma grande horta para prover o sustento da família. Mas no dia seguinte eu já estava jogando bola de gude com a molecada.
Acredito até que um pouco adiante eu tenha derrubado alguns moínhos de vento. Mas não foi no tempo em que eu nem sabia nadar.
Poesia nonsense
Em 1959
As unhas roendo os meninos, o rabo balançando o cachorro. Coisas estranhas, não?
E o que dizer desse "poema"?
Chegou o outono,
Os cajueiros estão repletos de mangas;
e as carambolas abundam nos mamoeiros.
Chupei um Chicabon
e pude observar
que no balé da vida
os homens dançam com os homens
e as mulheres dançam com as mulheres.
Um veterano da Escola de Aeronáutica, poeta nonsense da melhor qualidade, num assomo de inspiração pariu a glossolalia acima justo para ser interpretada por mim, bicho náuseo (calouro), para gáudio de outros veteranos.
48 anos depois
Ontem resolvi dar uma olhada nos blogs... da casa, da situação. Nunca mais me tinha permitido esse auto flagelo. Mas queria saber como conduziam o caso Renan.
Nenhuma surpresa. Estava do modo que eu pensava que estivesse. Afinal de contas Renan Calheiros é um companheiro e amigo não tem defeitos. Como se diz, inimigo, se defeitos não tiver a gente inventa. E a culpada não é nem a clássica "intriga da oposição" mas é ,sim, a mídia golpista.
Os "companheiros" petistas estão na contramão do povo brasileiro. Para eles Renan Calheiros é um santo. Quem não presta é a mídia.
Vamos colher amoras nas goiabeiras da insanidade e no nonsense dos "companheiros".
Nicolau Tolentino
Vai, mísero cavalo lazarento
Pastar longas campinas livremente;
Não percas tempo, enquanto to consente
De magros cães faminto ajuntamento:
Esta sela, teu único ornamento,
Para sinal de minha dor veemente,
De torto prego ficará pendente,
Despojo inútil do inconstante vento (1):
Morre em paz; que, em havendo algum dinheiro,
Hei-de mandar, em honra de teu nome,
Abrir em negra terra este letreiro:
— "Aqui, piedoso entulho os ossos come
Do mais fiel, mais rápido sendeiro,
Que fora eterno a não morrer de fome"
(1) O vento da fortuna
A expressão em azul foi citada no post anterior.
Nicolau Tolentino (1740 - 1811)
Poeta satírico português, natural de Lisboa. Estudou direito em Coimbra durante vários anos e, em 1767, tornou-se professor de retórica e de poética.
O amor é uma flor roxa
Pivô da crise que ameaça derrubar o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), a jornalista Mônica Veloso, 38, pensa em se mudar de Brasília: "Virei o terror da cidade".
Se gosta de fofoca, leia sua entrevista à Folha.
Isso tudo é muito complicado porque, segundo José Simão, esse tipo de romance começa sempre no motel e acaba sempre em pensão. A Mônica Veloso diz que amou, amou muito. Isso porque ela desconhece sobre o amor o que dele dizia uma amiga minha: "O amor é uma flor roxa que nasce no coração do trouxa".
Lembro agora dos filmes americanos onde o mocinho dizia à heroína: "I love you so much". Tudo cascata. Me parece mais autêntico quando a nordestina fala de sua relação: "A gente se gosta". Amor é uma palavra muito forte. Lembra quase Dante Aleghieri que descreve na Divina Comédia seu encontro no Paraíso com a amada, Beatriz. O amor seria um combustível para uso dos poetas. Eu mesmo, aos vinte anos de idade, cometi o exagêro abaixo:
Será que eu hoje ao menos pensei nela
mesmo de um modo vago e momentâneo
ou, simplesmente, suprimi do crânio
tão meiga imagem de mulher tão bela?
Será que eu hoje já nesse descuido
me abandonei qual leve pluma ao vento?
Talvez, porque meu débil pensamento
parece imerso num estranho fluido.
Porém é cedo, nem ainda o sol
deixou seus raios darem luz ao dia,
ainda o mundo dorme e, todavia,
creio ter visto há tempos o arrebol;
Pois pensar nela traz-me tal engano
que um só momento mais parece um ano.
Ou pode essa ânsia de amor se resumir num desejo, o DESEJO de Gonçalves Dias:
Ah! que eu não morra sem provar, ao menos
Sequer por um instante, nesta vida
Amor igual ao meu!
Dá, Senhor Deus, que eu sobre a terra encontre
Um anjo, uma mulher, uma obra tua,
Que sinta o meu sentir;
Uma alma que me entenda, irmã da minha,
Que escute o meu silêncio, que me siga
Dos ares na amplidão!
Que em laço estreito unidas, juntas, presas,
Deixando a terra e o lodo, aos céus remontem
Num êxtase de amor!
(De Primeiros Cantos)
Seu Lalo, 12/Setembro/2006
Estou há mais de um mês sem produzir aqui no Seu Lalo. Aproveito o fato de ter comentado num blog sobre o uso de uma expressão errada - uso esse proposital - ter sido tomado a sério por leitores que acreditam em letra de forma. É costume dizer-se: deu no jornal! Não quer dizer que seja verdade, embora se diga que o que a televisão não dá, não aconteceu. No jornal e na televisão também se erra; os brutos também amam.
Num texto intitulado "Movimento Nacional em Defesa da Língua Portuguesa" escrito por Murilo Badaró, membro da Academia Mineira de Letras, li: "Lamentavelmente, o desprezo pelo bom uso da língua é mais notável entre aqueles que, por dever de ofício e posição, deveriam ser os primeiros a esmerar-se no seu trato. O mau exemplo prolifera e produz seus efeitos maléficos em meio do povo, este mais susceptível de acolher os barbarismos e os solecismos que infestam a fala e a escrita dos nossos dias".
Algumas pessoas se reuniram para consertar a língua portuguesa. Não se corre mais risco de vida, sério, agora é risco de morte. Trocaram seis por meia dúzia. Não se entrega mais à domicílio. Todos entregam em domicílio. Para não falar no engessamento da concordância verbal: todos os verbos pedem de que. Ouvi de que, soube de que, tomei conhecimento de que, é a cultura do de que.
E cuidado com os advérbios! Não é "menas" verdade que eles não são usados corretamente. O exemplo clássico é: "ela estava meia cansada".
Termino deixando um belo soneto de alguém que era do ramo - Olavo Bilac
Última flor do Lácio
Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...
Amo-te assim, desconhecida e obscura.
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!
Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
em que da voz materna ouvi: "meu filho!",
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!